Lá pelas tantas na minha infância, descobrí , aos poucos, que em todos os dias aparecia lá em casa um caboclo, pessoa humilde, pobre, mal vestido, entre sério o brincalhão, dependendo de seu estado etílico.
Não o notava em nossa residência, mas, indo, como todos os piás, tomar banho no Pessegueiro, passávamos defronte uma casinha de páu-a-pique, coberta com capim.
Aí era seu lar.
Aos poucos fui entendendo que vivia de changa.
Aquerenciou-se junto a nós, indo todos os dias, chovesse ou não, cumprir suas tarefas diárias, que consistiam, em recolher lenha, cortá-la; empilhá-la; tirar água do poço; encher o taque e alguns reservatórios com água para a faina domestica.
Limpar o pátio, varrê-lo e – santa ignorância – tocar fogo nos monturos.
Entre uma empreitada e outra, refugiava-se num porão onde ficavam as bugigangas da família.
Ao baixar o sol dava por terminada sua jornada de trabalho, indo, invariavelmente, meio "alto" para o seu lar, doce lar. E saia meio alto porque tinha uma tática para beber. Colocada em um baldrame, no porão, entronizara uma imagem de chumbo que representava Santo Onofre. Como se dizia e se acredita que esse santo gosta de uma pinga, sendo padroeiro dos gambás,pedia a cachaça na cozinha de casa, sendo prontamente atendido.
Antes do sol se por o "santo" ingerira todo o liquido!
Tinha em seu rancho, como sua companheira. uma cabocla bonita que lhe deu um montão de filhos; alguns destes triunfaram na vida, como o Arante e a Sulica.
Uma vez, foi parado por nossa irmã Sidércia, a Policial de Dia, auxiliada na oportunidade pela mana Águeda que o surpreenderam portando coisas que não lhe pertenciam.
A pretexto de dar milho para as galinhas, torceu o pescoço de uma delas e a amarrou junto ao cinto. Fora a cozinha pedir um bocado de arroz para fazer, em sua casa galinha com arroz, quando o galináceo apareceu sob o seu casacão. Descoberto foi uma risada geral.
Por certo participou da revolução de 1923, quando houve, degolas praticadas por ambos os lados. Fazia um gesto de uma faca cortando o pescoço , olhando para os lados para ver se não havia por ali integrantes das forças revolucionárias.
Falando baixinho, como se sussurrasse, dizia o nome de alguns coronéis que comandaram as tropas e deram ordens para esse tipo de vingança.
Eu o via ou evoco o sua figura estampada em versos de Jaime Caetano Braun, inspirados, por certo, em personagens como o velho Brito:
"TIO ANASTÁCIO
Tio Anastácio p'ra aqui;
Tio Anastácio p'ra lá...
Mandado mesmo que piá
Por aquela redondeza;
Nos remendos da pobreza,
Entrava e passava inverno,
Como um tronco, só no cerno,
Pelegueando a natureza!"
"SEU ESMILINDRO
A ninguém diz de onde veio
Nem tampouco pra onde vai.
Não tem mãe, nem teve pai
Que lhe acolherasse um nome
E à medida que se some
No tremendal da amargura
Vai vendo que sem ternura
As almas morrem de fome."
Quando meu pai chegava em casa, do trabalho, e se encontravam punham a prosa em dia.
Contava historias de revolução; de assombração e recitava versos que A la Paixão Cortes, recolhera nas encruzilhadas da vida:
Dei com teu rasto da areia
E me pus considerá
Que mimo será teu corpo
Se teu rasto me faz chora.
CASAMENTO DA RAPOSA
A raposa e o lagarto
Trataram de se casar
A raposa foi de auto
Com sapato de abotoá
Macaco veio a cavalo
Com as esporas de domar.
Se foram ao juiz carneiro
Juiz carneiro fez casar
O tatu que fez o baile
E o sapo que foi dançar
O sapo tirou a dama
A dama não quis dançar
Já puxou do seu "40"
Começou a atordoar
Deu um tapa no lagarto
Tirou a orelha do lugar.
PAI DA CACHAÇA
Eu me lembro da minha terra
Da cachaça que eu bebia
E uma moça me pedia
Que eu deixasse de beber
Mas hei de tomar um porre
Na chuva quero morrer
Não quero que o povo chore
Quero que chore a garrafa
Só quero que o povo diga
- se foi o pai da cachaça.
Das garrafas façam vela
Da pipa façam o caixão
Depois de estar "mortalhado"
Me ponham o copo na mão.
La no fundo do alambique
Quero minha sepultura
Depois de estar sepultado
To no meio da fartura.
Meu irmão Paulo Zenni Araujo, poeta gauchesco, prestou-lhe homenagen em verso:
VELHO BRITO
(Paulo Z. Araujo)
Mulato de cara alegre
Forte, rijo, entroncado
Mesmo sendo analfabeto.
Vivaracho, respeitado.
Jamais enjeitou parada
Por mais danada que fosse
Por um prato de comida
E um copo de vinho doce
Um naco de fumo em rolo
Tinha sempre na algibeira
Boa palha, avios de fogo
Na cintura, a carneadeira.
E num frasco de xarope
Levava um trago e tanto
Sempre que bebia um gole
Dava um outro pro santo.
Benzia em nome de Deus
Através de simpatia
Costurava nó nas tripas
E até tormenta benzia
Para íngua, eram três dias
- pra verruga, três carvão
E depois da benzedura
Iam queimar no fogão.
O seu cusco era o "Brinquedo"
Que sacrossanta ironia
Que nunca brincou na vida
Com o "Brinquedo" vivia.
Deve estar servindo um mate
O João Avelino de Britto
Tomando um trago de canha
La nos pagos do infinito
Morreu pobre, na indigencia
Sem saber a própria idade
É mais um santo no céu
Protetor da irmandade.